quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Primeira trans a frente de uma bateria de escola de samba em SP, comemora: “Eu sambo para o preconceito”

Por Felipe Abílio

Camila Prins, a primeira madrinha de bateria transexual do grupo de especial do carnaval de São Paulo, está sambando na cara dos transfóbicos. Realizando um sonho de criança, ela comemora a oportunidade de sair à frente da bateria da Colorado do Brás, e se diz muito feliz pelo respeito que tem recebido por onde passa pela folia paulistana.

“Ser a primeira transexual à frente de uma bateria é uma grande conquista, porque consigo levantar minha bandeira. Fico assustada com a situação do Brasil, que é o país que mais mata transexuais no mundo, a gente sofre discriminação 24 horas por dia. Temos que conquistar o respeito na sociedade, me sinto abençoada chegar até aqui”, comemorou, durante o ensaio para o Yahoo.

A alçada à madrinha de bateria do grupo especial é o resultado de muito trabalho e perseverança. Há 20 anos no carnaval pela Camisa Verde e Branco, Camila esperou 18 até conseguir chegar ao posto de rainha pelo grupo de acesso em 2018. Para comemorar a nova função, a bailarina prepara uma surpresa para a avenida.

“Quando falamos de transgênero, as pessoas têm aquela visão marginalizada, da prostituição, do crime, e todos ficaram assustados quando souberam que teriam uma trans à frente da bateria em 2018. Mas a gente chega e vai ganhando o respeito, conquistando, mostrando que não é assim. Foi a realização de um sonho e continua sendo. Neste ano, assumi os gastos do luxo e venho exuberante. Venho representando uma joia, com a ajuda de um atelier maravilhoso, o Espaço Luz.”

Para fazer bonito no desfile da agremiação — a segunda escola a desfilar no Anhembi, dia 22 de fevereiro — Camila pegou na preparação entre academia e estética. E, para se inspirar, ela tem um ídolo.

“É uma preparação intensa de muito treino. Vivo numa correria, mas eu amo. No final, tudo vale a pena. Entro na bateria e meu coração toca, não tenho palavras para definir. Para entrar na avenida me inspiro muito na Luiza Brunet, que é uma mulher maravilhosa. Até me arrepio ao falar dela. Ela é exuberante e muito charmosa.”

Carnaval e aceitação

A história de vida de Camila cruza com os bailes de Carnaval dos clubes, aqueles típicos de cidades interioranas. Nascida em Leme, no interior de São Paulo, ela foi criada na pequena cidade de Porto Ferreira, a 227 km da capital. E foi em uma dessas festas cujo tema era "troca os gêneros" — quando homem se veste de mulher e mulher se veste de homem — que a bailarina se reconheceu pela primeira vez ao olhar no espelho.

“Conheci o Carnaval quando tinha quatro ou cinco anos, no interior de São Paulo. Desde pequena, já era apaixonada por clubes. Ajudava a minha mãe a bordar as miçangas, lantejoulas. Quando tinha 11 anos, fui em uma festa vestida de mulher, essas que acontecem no interior. Quando voltei para a casa não queria mais me vestir de menino. Foi ali que assumi a minha transexualidade. Comecei a tomar hormônios, deixei o cabelo crescer. O Carnaval me deu coragem para assumir como mulher.”

Aos 40 anos, o sorriso doce e a voz mansa refletem a postura tranquila e alegre com que Camila vive o dia a dia. Mas nem ela escapou das estatísticas. Apesar da família ter aceitado sua transição de gênero, ser criada em uma cidade com pouco mais de 40 mil habitante trouxe consequências irreparáveis para sua vida.

“Com cinco anos, minha mãe já sabia. Eu era muito afeminada e ela me levou num psicólogo. Para toda a família nunca foi uma questão, mas na rua, sim. Sofria muito bullying na escola, me chamavam de Sarita, que era uma transexual na novela de Glória Perez. Juntavam todas as crianças e ficavam fazendo isso, me chamando de outras coisas que nem gosto de lembrar. Quando tinha 11 anos, não aguentei e parei de ir à escola. Meus pais achavam que eu estava estudando, mas, não, estava tentando descobrir como sair daquela situação e ser alguém na vida.”

Para se ver livre das agressões que sofria na cidade pequena, Camila se mudou para Suíça há 19 anos. Mesmo tempo que está casada com o químico suíço Sylvain Piguet. Empoderada, hoje ela não abaixa a cabeça para a transfobia.

Foto: Iwi Onodera/ Yahoo Brasil!

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“Na Suíça, tive a oportunidade de estudar a língua francesa, casei, dei a volta por cima. Cheguei a ser agredida no interior, cidade pequena, ninguém sabia como lidar com uma transexual. Quando ia ver um show, ficava de longe com medo de ser notada, mas hoje me aceito, tenho orgulho da pessoa que sou. Consegui trocar meu nome sem fazer a cirurgia, isso é muito gratificante. Não tenho medo de nada. Sou forte, guerreira e não deixo nada me atingir. Eu sambo para o preconceito.”

A autoaceitação e o respeito proporcionado pela sociedade sueca fez com que Camila deixasse vários traumas para trás e conseguisse vencer as inseguranças ao se olhar no espelho. Hoje, ela não deixa de fazer o que quer. “Antigamente, tinha medo de ir num restaurante, entrar em bons hotéis ou até mesmo de entrar em um shopping e ser barrada. Hoje, não, eu enfrento. Vivo de forma natural, leve e feliz como qualquer outro ser humano.”

Agradecimentos
Maquiagem: @idm_isabelly
Cabelo e Staff: @thiipacheco
Figurinos: @regiscoelho  e @rodrigoguimaraesporto
Foto: Iwi Onodera

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