sábado, 15 de outubro de 2016

DAREL "de corpo inteiro" E A ARTE ITINERANTE DOS PALMARES

artes

O pintor, desenhista e gravador palmarense diz que tem quatro fases definidas: cidades, anjos, máquinas e mulheres | Weydson Barros Leal


Diz-se que uma das maneiras de se definir Darei Valença é "um gênio de gênio difícil". Conversando com ele sobre arte, porém, não é o que parece, pois se trata de um artista dotado de um humor e ironia deliciosos. A dificuldade de seu "gênio" talvez se deva a uma personalidade inquieta e um espírito assaz refinado, que parece se divertir ao avisar-me antes de qualquer pergunta: "Eu sempre me contradigo. O que eu digo hoje, não será a mesma coisa amanhã. É mais ou menos como a pintura. O quadro nunca é o mesmo. O quadro que vejo hoje não será o mesmo que verei amanhã". Peço-lhe para esclarecer sobre esta advertência, e ele explica: "0 quadro é muito parecido com o casco do navio. Lembro de minha infância e adolescência quando ia ao porto do Recife e via os navios.


Sempre ouvia que aqueles cascos manchados nunca seriam os mesmos, as manchas não seriam as mesmas quando os navios chegassem no próximo porto ou quando voltassem ali. Assim como aqueles navios, a cada dia eu não sou o mesmo e o quadro não é o mesmo". Darei Valença nasceu em Palmares, interior de Pernambuco, em 9 de dezembro de 1924. Sua história, de quase 80 anos, não é simples resumir, pois inclui viagens, pessoas e lugares por que passou desde os 13 anos, quando deixou a terra natal. Nessa idade, foi trabalhar como auxiliar de escritório numa usina de açúcar em Catende, na Zona da Mata pernambucana, onde aprendeu desenho técnico, Aos 17 foi para o Recife, de onde, anos depois, de novo partiria.

 


Até hoje, de cada lugar onde esteve ele traz uma recordação ligada ao desenho, assim como lembra a primeira vez que despertou para esta arte: "Lembro uma coisa boa de minha infância: lá em Catende tinha uma tipografia, uma gráfica, onde trabalhava Bajado, um grande desenhista, que depois foi viver em Olinda e ficou famoso como pintor. Foi ele quem me fez despertar para a arte, aos 6 ou 7 anos de idade, vendo desenhar em talões de jogo do bicho. 

Com ele descobri a sensibilidade do lápis sobre o papel. Seus desenhos eram sempre instigantes e me fizeram querer desenhar também. Outros pintores e desenhistas podem ter sido despertados por Piero della Francesca ou Michelangelo. Quanto a mim, eu vi a arte através de Bajado. “Chegando ao Recife em 1941, Darel iniciou estudos de desenho na Escola de Belas Artes. Foi expulso, segundo ele, porque não aceitava os modelos de gesso, preferindo retratar artistas como Greta Garbo, que via nas revistas de cinema — arte que até hoje é uma de suas paixões: “Gosto muito de música e cinema. Desde menino vejo e gosto de cinema. Creio até que a cinética e a imagem do cinema me influenciam.” 

Diferente da maioria dos pintores sobre quem outros pintores predominam como influência, para Darel são a fotografia e o cinema que lhe despertam a observação do comportamento e da alma humana, isto sim, elementos marcantes em sua obra: Todo o meu trabalho tem algo nas dobras de sua alma que também está nas dobras da alma humana”, traduz. Inquieto em sua própria alma, aos 20 anos Darei já estava no Rio de Janeiro. Começou a estudar gravura com Henrique Oswald no Liceu de Artes e Ofícios. A arte da litografia, conta Darel, aprendeu nessa época, com um homem simples que apenas conhecia como “Bacalhau.”


Bacalhau fazia litografias industrialmente, para criar estampas de tecido, cartas de baralho, caixas de biscoito Aymoré. "Anos depois, lembra Darel, quando cheguei ao Museu Nacional de Viena para fazer um curso de litografia, o professor me disse: — Mas você já sabe tudo!..." Durante os dois anos em que viveu na Europa, Darel desenhou inúmeras "paisagens" e executou 12 murais para a cidade italiana de Reggio Emilia. Neste período, conheceu Giorgio Morandi. "Era uma época de muita ebulição. Havia muitos debates sobre a validade dos ismos — quase sempre sobre o 'figurativo' e o 'não figurativo'. Era a tônica das brigas entre os artistas. Sempre que eu tocava no assunto, ele, Morandi, me respondia com uma metáfora. Lembro certa vez, quando estávamos na sala de seu pequeno apartamento, e lhe perguntei algo como 'o que você acha do figurativo e do abstrato'? Ele respondeu: — Precisamos reencontrar a confiança na natureza. Então, apontando a paisagem pela janela, eu quis saber: — Essa natureza? E ele: — Não esta que nós vemos, mas aquela em que nós acreditamos e que está dentro de nós..."


Comento sobre o "erotismo" ou sensualidade latente em seus desenhos, cujo tema é a mulher, e pergunto-lhe sobre afinidades com pintores como Egon Schiele. Darel explica suas filiações: "Sou mais ligado a Gustav Klint, Bonnard, Francis Bacon, lberê, Pancetti. Vejo beleza e sensualidade em toda obra de arte em que o artista esteja completo, por inteiro. Você já notou quanta sensualidade — e até mesmo sexualidade — em quadros de Bonnard, Morandi? Os artistas, em sua maioria, não penduram sua parte sexual atrás da porta quando estão trabalhando, estão completos, estão de corpo inteiro. "Quero insistir sobre o tema da mulher”, da vontade e do impulso que o fazem persegui-lo em cada desenho. Mas dessa vez, ele nega: "Não 'persigo', não procuro. Eu encontro episódios”. Meus episódios estão na paisagem, nas máquinas, nos gatos, nas mulheres, até num canto de muro mijado por um cachorro. Não sei por que aparece o desejo de pintar, desenhar, gravar... E, curiosamente, completa: ”Não sou ligado à sexualidade, sou ligado a tudo que me fala ao lápis”“.

Esta matéria faz parte da Revista CONTINENTE MULTICULTURAL
Edição Especial /2006
Artista de Pernambuco - Poder das Formas e Cores

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