artes
O pintor, desenhista e gravador palmarense diz que tem quatro fases definidas: cidades, anjos, máquinas e mulheres | Weydson Barros Leal
Diz-se
que uma das maneiras de se definir Darei Valença é "um gênio de gênio
difícil". Conversando com ele sobre arte, porém, não é o que parece, pois
se trata de um artista dotado de um humor e ironia deliciosos. A dificuldade de
seu "gênio" talvez se deva a uma personalidade inquieta e um espírito
assaz refinado, que parece se divertir ao avisar-me antes de qualquer pergunta:
"Eu sempre me contradigo. O que eu digo hoje, não será a mesma coisa
amanhã. É mais ou menos como a pintura. O quadro nunca é o mesmo. O quadro que
vejo hoje não será o mesmo que verei amanhã". Peço-lhe para esclarecer
sobre esta advertência, e ele explica: "0 quadro é muito parecido com o
casco do navio. Lembro de minha infância e adolescência quando ia ao porto do
Recife e via os navios.
Sempre ouvia que aqueles cascos manchados nunca seriam os
mesmos, as manchas não seriam as mesmas quando os navios chegassem no próximo
porto ou quando voltassem ali. Assim como aqueles navios, a cada dia eu não sou
o mesmo e o quadro não é o mesmo". Darei Valença nasceu em Palmares,
interior de Pernambuco, em 9 de dezembro de 1924. Sua história, de quase 80
anos, não é simples resumir, pois inclui viagens, pessoas e lugares por que passou
desde os 13 anos, quando deixou a terra natal. Nessa idade, foi trabalhar como
auxiliar de escritório numa usina de açúcar em Catende, na Zona da Mata
pernambucana, onde aprendeu desenho técnico, Aos 17 foi para o Recife, de onde,
anos depois, de novo partiria.
Até hoje, de cada lugar onde esteve ele traz uma recordação
ligada ao desenho, assim como lembra a primeira vez que despertou para esta
arte: "Lembro uma coisa boa de minha infância: lá em Catende tinha uma
tipografia, uma gráfica, onde trabalhava Bajado, um grande desenhista, que
depois foi viver em Olinda e ficou famoso como pintor. Foi ele quem me fez
despertar para a arte, aos 6 ou 7 anos de idade, vendo desenhar em talões de
jogo do bicho.
Com ele descobri a sensibilidade do lápis sobre o papel. Seus desenhos
eram sempre instigantes e me fizeram querer desenhar também. Outros pintores e
desenhistas podem ter sido despertados por Piero della Francesca ou Michelangelo.
Quanto a mim, eu vi a arte através de Bajado. “Chegando ao Recife em 1941, Darel
iniciou estudos de desenho na Escola de Belas Artes. Foi expulso, segundo ele,
porque não aceitava os modelos de gesso, preferindo retratar artistas como
Greta Garbo, que via nas revistas de cinema — arte que até hoje é uma de suas
paixões: “Gosto muito de música e cinema. Desde menino vejo e gosto de cinema.
Creio até que a cinética e a imagem do cinema me influenciam.”
Diferente da
maioria dos pintores sobre quem outros pintores predominam como influência,
para Darel são a fotografia e o cinema que lhe despertam a observação do
comportamento e da alma humana, isto sim, elementos marcantes em sua obra: Todo
o meu trabalho tem algo nas dobras de sua alma que também está nas dobras da
alma humana”, traduz. Inquieto em sua própria alma, aos 20 anos Darei já estava
no Rio de Janeiro. Começou a estudar gravura com Henrique Oswald no Liceu de
Artes e Ofícios. A arte da litografia, conta Darel, aprendeu nessa época, com
um homem simples que apenas conhecia como “Bacalhau.”
Bacalhau fazia litografias industrialmente, para criar
estampas de tecido, cartas de baralho, caixas de biscoito Aymoré. "Anos
depois, lembra Darel, quando cheguei ao Museu Nacional de Viena para fazer um
curso de litografia, o professor me disse: — Mas você já sabe tudo!..."
Durante os dois anos em que viveu na Europa, Darel desenhou inúmeras
"paisagens" e executou 12 murais para a cidade italiana de Reggio
Emilia. Neste período, conheceu Giorgio Morandi. "Era uma época de muita
ebulição. Havia muitos debates sobre a validade dos ismos — quase sempre sobre
o 'figurativo' e o 'não figurativo'. Era a tônica
das brigas entre os artistas. Sempre que eu tocava no assunto, ele, Morandi, me
respondia com uma metáfora. Lembro certa vez, quando estávamos na sala
de seu pequeno apartamento, e lhe perguntei algo como 'o que você acha do
figurativo e do abstrato'? Ele respondeu: — Precisamos reencontrar a confiança
na natureza. Então, apontando a paisagem pela janela, eu quis saber: — Essa
natureza? E ele: — Não esta que nós vemos, mas aquela em que nós acreditamos e
que está dentro de nós..."
Comento sobre o "erotismo" ou sensualidade latente
em seus desenhos, cujo tema é a mulher, e pergunto-lhe sobre afinidades com
pintores como Egon Schiele. Darel explica suas filiações: "Sou mais ligado
a Gustav Klint, Bonnard, Francis Bacon, lberê, Pancetti. Vejo beleza e
sensualidade em toda obra de arte em que o artista esteja completo, por
inteiro. Você já notou quanta sensualidade — e até mesmo sexualidade — em
quadros de Bonnard, Morandi? Os artistas, em sua maioria, não penduram sua
parte sexual atrás da porta quando estão trabalhando, estão completos, estão de
corpo inteiro. "Quero insistir sobre o tema da mulher”, da vontade e do
impulso que o fazem persegui-lo em cada desenho. Mas dessa vez, ele nega:
"Não 'persigo', não procuro. Eu encontro episódios”. Meus episódios estão
na paisagem, nas máquinas, nos gatos, nas mulheres, até num canto de muro
mijado por um cachorro. Não sei por que aparece o desejo de pintar, desenhar,
gravar... E, curiosamente, completa: ”Não sou ligado à sexualidade, sou ligado
a tudo que me fala ao lápis”“.
Esta matéria faz parte da Revista CONTINENTE MULTICULTURAL
Edição Especial /2006
Artista de Pernambuco - Poder das Formas e Cores
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