ARTES
Há 43 anos, morria o mestre da escultura do barro, que
somente tomou conhecimento do valor de sua obra pelo olhar do Outro I Homero
Fonseca
Esta matéria faz parte da Revista CONTINENTE MULTICULTURAL Edição Especial /2006 Artista de Pernambuco - Poder das Formas e Cores
Na edição de 1° de fevereiro de 1963, a revista Time
publicou uma página com a notícia da morte de um artista plástico brasileiro.
Raramente um conterrâneo obteve tamanha deferência da prestigiosa publicação
americana. Era o necrológo de Vitalino Pereira dos Santos, nascido num distrito
de Caruaru em 10 de julho de 1909 e morto a 20 de janeira daquele ano. Mestre
Vitalino não tinha consciência da dimensão da arte. Já era famoso mas levava a
vida como uma brincadeira. No fundo, não compreendia muito hem o valor
(financeiro e simbólico) daquilo que fazia com as mãos a partir do barro
apanhado às margens do rio Ipo¡uca. Ele se considerava um artista, sim: um
músico. Era no pífano - que tocava em festas, novenas, bares, quintais - que se
realizava como artista. Ele tomou conhecimento da importância de sua obra
através dos Outro: intelectuais, jornalistas, criticos, personalidades do mundo
exterior ao seu.
Vitalino foi um tipco "artista popular. Nascido de
urna família humilde, ligada à roça, aprendeu com a mãe, artesã de cerâmica
utilitária, a manejara argila, dando forma a pequenos bichos, chamados loiça de
brincadeira". Todo o sábado, ia com a mãe e os irmãos do Alto do Moura
para a feira, então nas ruas do centro de Caruaru, e ganhava uns trocados vendendo
seus bonecos. Logo evoluiu e passou a criar figuras e cenas do cotidiano rural
nordestino, ganhando notoriedade a partir de sua "descoberta' pelo artista
plástico e divulgador de arte Augusto Rodrigues.
Durante mais de quatro décadas, produziu milhares de
peças abrangendo mais de 130 temas: animais (bois, cavalos, cachorros, onças,
bodes, porcos), cangaceiros, bêbados, vaqueiros, lavradores, lobisomens,
violeiros, o Diabo. E cenas que representam um formidável painel antropológico
das comunidades interioranas do chamado "ciclo da vida" (nascimento,
casamento, morte) a procissões, vaquejadas, lavradores na roça, brigas de foice,
prisão de ladrões de galinha, retirantes da seca Já maduro, refletindo sua
interação inevitável com o mundo urbano, retratou dentistas, advogados,
fotógrafos em ação, cirurgiões operando, locutores de rádio. Foi um
extraordinário cronista do cotidiano popular, modelando no burro os símbolos,
valores, preconceitos e sentimentos da gente pobre do Nordeste.

Em outubro de 1960, uma caravana de artistas populares
pernambucanos, cujo maior expoente era o mestre da cerâmica, é levada ao Rio.
Vitalino é levado aos salões chiques da antiga capital, participa de jantares e
recepção em que foram leiloadas 16 de suas peças, confraterniza com Manuel
Bandeira, Jorge Amado, Ivo Pitangui, Ari Barroso (o leiloeiro) e outras
figuras, é apresentado a governador, prefeito, empresários e artistas, recebe
condecoração, conhece o Maracanã, grava programa de televisão, visita a
Embaixada dos Estados Unidos e a Academia Brasileira de Letras. Voltou para Caruaru
trazendo na bagagem nenhum tostão e a gravação do seu único disco tocando
pífano com banda na Rádio MEC, lançado em 1975 (Vitalino e sua Zabumba/MEC).
Depois disso, esteve em Brasília, onde tocou pífano em
festas populares, participou de oficinas de cerâmica, visitou o Palácio do
Planalto e concedeu entrevistas, e foi levado a São Paulo para um evento
patrocinado por uma companhia de aviação. Três meses depois, morreu em sua
modesta casa no Alto do Moura. Estava decadente, praticamente não produzia,
limitando-se a assinar peças feitas pelos filhos, entregue ao alcoolismo.
O homem, cuja casa virou museu, que foi protagonista de
documentário e de peça de teatro (Auto das 7 Luas de Barro, de Vital Santos),
personagem de folheto (Biografia de Mestre Vitalino, de José Severino
Cristóvão), tema de desfile de escola de samba do Rio (Império da Tijuca,
1977), cujas peças circularam pelos museus mais importantes da Europa e dos
Estados Unidos e podem valer hoje até R$ 10.000,00, morreu de varíola, doença
típica do subdesenvolvimento. Pobre (mas não miserável como insinuam as
abordagens sentimentalistas), foi vítima da ignorância: recusou-se a receber
cuidados médicos e foi entregue a um curandeiro. Quando a notícia de sua agonia
chegou à cidade, o médico João Miranda acorreu à sua casa, mas era tarde
demais.
Continente Multicultural
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