Arnaldo Bloch
Dias atrás, numa dessas polêmicas polarizadas que tomaram conta de boa parte da comunicação atual, o “pessoal da comédia” brigou com “o pessoal do cinema de arte”. Da discussão emergiram aquelas bobagens do tipo “cinema é, sempre foi e vai ser entretenimento para grande público”. Ou a afirmação “oposta”, igualmente tola, de que “cinema para valer tem que ser de invenção”.
A coisa toda envolvia, de um lado do ringue, o sucesso de público de “De pernas pro ar 2” (Roberto Santucci), número 1 nacional do momento. Do outro lado, “O som ao redor” (Kleber Mendonça Filho), sucesso de crítica nacional e internacional com prestígio crescente e um público até bastante bom para o pequeno número de cópias.
Um ator cômico da moda reagiu.
— “O sono ao redor” — disse o comediante, como se, com isso, estivesse acrescentando à discussão algo que não fosse o aborrecente prazer de um trocadilho fácil.
Ao fazer isso, o comediante ocupou o papel não do humorista, que faz refletir: ele foi apenas o piadista de salão, ou, se quiser, o stand-up ambulante. E reforçou a tal polarização, dando armas ao “inimigo": “Ora, se isso é comédia, então o nível está baixo, mesmo”.
Em debate nesta semana num evento sobre cinema o tema foi levantado, e algumas ideias interessantes surgiram. Uma delas é que os que se arvoram o direito de dizer “o que é cinema” fazem-no tomando o particular por um geral delirante. Ou seja, confundem — por obtusidade ou má-fé — sua ideia sobre o que é cinema com um conceito absoluto, que precede a discussão: “Se eu digo que cinema é isso, então cinema é isso”. É só prestar atenção nas atuais “polêmicas” para notar que as formas “eu acho”, “eu penso”, “na minha opinião”, “posso estar enganado” estão em desuso.
Aí fica aquele Fla x Flu: cinema é arte ou cinema é entretenimento; cinema é tradição ou é invenção; o meio ou a mensagem; mercado ou guerrilha; roteiro ou liberdade.
Nesse jogo, os que afirmam seu conceito absoluto de cinema estão de tal forma fechados em suas seitas classistas, em suas igrejinhas intelectuais ou em seus castelinhos corporativistas que desaprenderam o gesto mental simples de cogitar que duas ideias não são, necessariamente, excludentes. Respondem a impulsos mais afeitos à barbárie que à civilização: “O que eu digo é certo, ou vou escalpelá-lo”.
Num sentido mais básico, de “cada macaco no seu galho”, não poderiam conviver no mesmo mundo cinema de arte, para um público segmentado, e cinema de grande público?
E quando um filme “de arte” acaba caindo no gosto, momento incomum, mas belo, em que o ideal íntimo de todo artista se realiza?
Por outra: um filme “de arte” que só funciona para um público pequeno, mas fiel, coeso, interessante e plural é um filme equivocado?
Embora não seja obrigatório, um ser humano é capaz de entreter e refletir ao mesmo tempo?
Quem pensa não sente prazer? Divertir-se é sinônimo de se lobotomizar?
Em conversas nesta semana, houve quem bradasse contra essa mania de só copiar (estilos, escolas, países, livros). Para essas pessoas é possível, e ético, fazer um cinema das bases. Um cinema que se descubra novo ao aliar-se, de forma apartidária e contemplativa, às expressões genuínas de uma comunidade num momento específico e contemporâneo do criador — como, aparentemente, está fazendo o pessoal de Recife. Um cineasta pernambucano, aliás, dizia na quinta-feira que o Rio de Janeiro está precisando fazer um pouco de cinema assim. Olhar para como os muitos povos estão se comportando em vez de olhar só para a imagem que se faz de uma “classe padrão carioca", que é, mais que uma classe média, “a média das classes”, idealizada.
Esse vício, de acordo com o cineasta em questão, estaria expresso por um pré-conceito do que seja a nova classe C da Barra. Como se estivéssemos, no Rio, meio esquecidos do lado “Se segura, malandro” do carioca, que está aí, renovado, misturado a outros modos, outros bairros, mas meio oculto por um roteiro mental obstinado e preguiçoso.
Pode-se argumentar que assim caminha a dialética: cada um afirma a sua verdade, e desta luta sai uma resultante. As discussões recentes, porém, limitadas pelo imperativo do tempo curto e pela moda das “polêmicas”, tendem a não gerar nada: elas são autolimitadas pela sua utilidade imediata, que é de entreter no estilo UFC. Haverá um pouco de sangue, alguém vai levar o cinturão e depois passá-lo, sem que alguma novidade circule.
As “polêmicas” não permitem troca de informações suficiente para que se enxergue que há algumas respostas possíveis entre um polo e outro e que, às vezes, os polos sequer são opostos: são apenas vetores perdidos com medo de anular-se no conjunto.
É uma espécie de lógica de extermínio: em pleno século XXI, quando tanto se compartilha tudo, a discussão estética regride de um tempo de efervescência criativa para uma batalha campal reducionista pela conquista de 15 minutos de polêmica.
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